Dario Alparone*
O texto Das Unheimliche, publicado em 1919, mas pensado já em anos anteriores, busca dar conta da experiência de inquietação vivida diante de algumas formas de produção artística. A publicação do artigo ocorre no pós-guerra, período bastante prolífico para a teoria psicanalítica; será precisamente a partir desses anos, de fato, que a psicanálise de Freud se abrirá de maneira explícita e direta às questões sociais e políticas[1]. Neste texto, em particular, uma dimensão política já pode ser encontrada quando Freud menciona o termo grego ξένος,[2] que é “estrangeiro, estranho”, como uma das possíveis traduções de Das Unheimliche.
Freud recupera o termo unheimlich de Jentsch, psiquiatra alemão que escreveu o ensaio Zur Psychologie des Unheimlichen, um estudo sobre a psicologia do “infamiliar”, tomando-o como ponto de partida fundamental para sua própria pesquisa. Essa contribuição nos permite por em destaque, principalmente, a questão da experiência estética vinculada à experiência de estranheza e angústia. A contribuição do psiquiatra é útil a Freud, pelo menos para traçar o campo da questão, colocando-se em uma posição crítica em relação ao seu antecessor e definindo sua perspectiva como psicologicamente “não exaustiva”:
A tendência do psiquiatra seria de fato reduzir o infamiliar ao simples “não familiar” ou desconhecido, uma perspectiva que parece parcial ao pai da psicanálise, para a explicação da experiência angustiante de unheimlich. Freud critica seu próprio predecessor justamente por oferecer uma explicação da experiência estética angustiante, estendível à experiência sensorial e perceptiva em sentido estrito, que não leva em conta o envolvimento da própria subjetividade, isto é, do inconsciente. Em outras palavras, para Freud, o infamiliar é algo mais do que o mero incomum, uma vez que implica a participação do sujeito (do inconsciente) em tal experiência: a sensação angustiante depende do fato de que no estranho se reconhece algo do familiar e no doméstico algo do estrangeiro[4]. Este é um ponto crucial para entender a questão que se pretende abordar, ou seja, qual é a peculiaridade do olhar psicanalítico para a compreensão da experiência perturbadora no encontro com essa alteridade.
O estrangeiro entre psicologia cognitiva e psicanálise
Na reunião do Fórum Europeu em Roma 2018, houve várias intervenções que associaram a questão do Das Unheimliche à problemática social e política da migração[5].O estrangeiro envolve um terremoto no interior das comunidades nacionais e internacionais, das assembleias sociais e políticas, justamente porque ao mesmo tempo em que se posiciona como estranho a elas, quer nelas se incluir[6]. A questão psicanalítica do infamiliar transpõe-se, assim, do campo estético para o político e social na leitura de fenómenos migratórios, e em particular na explicação das reações da cultura e da política ocidentais em relação a eles.
Dentro do debate científico sobre a explicação dos fenômenos da discriminação social como reação de sujeitos e grupos ao encontro com a diversidade, uma das contribuições mais importantes é representada pela psicologia social cognitivista. Ela oferece uma perspectiva para a compreensão dos fenômenos de segregação de grupos, de discriminação racial e da “diversidade” em geral com a qual pode ser útil uma comparação, possivelmente acentuando os pontos de distância e semelhança em relação à psicanálise.
Na perspectiva cognitivista, os fenômenos de relação social de estilo discriminatório são explicados com base nos processos de categorização social[7]. Ao aplicar a estrutura cognitiva automática -estereótipos e preconceitos- básica das funções perceptivas e cognitivas às dinâmicas sociais, a psicologia cognitiva tende a explicar os fenômenos discriminatórios como determinados pelo processo da identificação categorial de estímulos perceptivos. Bruner, por exemplo, falava do esquema mental em termos de filtro que permite reduzir a complexidade do mundo reconduzindo estímulos semelhantes às categorias de nível superior: “Categorizando eventos diferentes e distintos como equivalentes, o organismo reduz a complexidade do seu ambiente. […] isto inclui a abstração e o uso de propriedades de definição nas quais os agrupamentos podem ser feitos […][8]. (Bruner et al., 1969, p.30)
As categorias seriam, portanto, conjuntos lógicos superiores com relação aos quais os objetos, as representações singulares de estímulos reais e concretos, são ordenados e simplificados. Já nesse sentido, o processo perceptivo se apresenta como um encontro puro entre objeto e sujeito, que reconhece o estímulo assimilando-o em padrões existentes e constituídos. Com referência ao nosso tema, é interessante destacar como para o autor é impossível ou disfuncional ficar sem as categorias: “Quando um evento não pode ser categorizado e identificado, sentimos terror diante disto que é misterioso. E, na realidade, o “misterioso” é em si mesmo uma categoria, mesmo que seja apenas uma que reúna os resíduos que não tenham entrado nas outras”[9]. (Bruner et al., 1969, p.31)
A psicologia cognitiva interpreta o não reconhecível, ou seja, o estímulo não identificável por meio dos esquemas, como algo que pode levar à desestabilização do sujeito. No intervalo entre o simbólico, a categoria, e o real, os psicólogos cognitivos reconhecem o aparecimento de um certo grau de “ansiedade”, cujo único remédio é uma nova e ulterior categorização. O processo de percepção e, de maneira mais geral, de conhecimento, não seria, portanto, possível em si mesmo se não houvesse estruturas cognitivas na base que permitissem identificar os estímulos e assimilá-los às categorias gerais em detrimento das diferenças entre eles. Trata-se de estruturas automáticas que, portanto, fundamentam a percepção com a finalidade de economizar o esforço interpretativo da realidade, que, se excede um certo grau de complexidade, produz um efeito “ansiogênico desadaptativo”:
A tarefa, talvez, mais difícil que se coloca para cada indivíduo é aquela de reduzir a grande variedade de estímulos em categorias conceituais que, tornam a realidade mais controlável e aumentar a adaptabilidade pessoal. […] O maior (quantitativamente) e melhor (qualitativamente) controle dos acontecimentos, alcançado através da utilização da conceituação, resulta, funcional para a reduzir a ansiedade despertada pelas novidades que em cada momento a realidade propõe[10]. (De Caroli, 2005, p.15)
Nesse sentido, pode-se ver como o cognitivismo oferece uma perspectiva do que é “estranho” às categorias possuídas, isto é, do que é não familiar, muito semelhante à de Jentsch ao definir o infamiliar. O sentimento de inquietação e angústia produzidos pela percepção do unheimlich remontam à dificuldade de identificar o objeto percebido e assimilá-lo à categoria de nível superior. Aqui estão o desconhecido e o incomum, que produzem ansiedade no sujeito, uma vez que falhariam, ou estariam reduzidos aos processos de adaptação do sujeito ao ambiente. Esta é obviamente uma abordagem que difere da psicanalítica pelo fato de que o infamiliar não é uma “lacuna” cognitiva entre categoria e objeto, e sim o reconhecimento no estranho do que é familiar: não há um sujeito puro diante de um objeto, mas um sujeito implicado na experiência de inquietação com o próprio inconsciente. O infamiliar não é o resultado de um “déficit” nas capacidades cognitivas e adaptativas do sujeito, mas uma figura imanente à subjetividade humana, já em si mesma desadaptativa[11].
O sujeito, o Outro e a diferença
A teoria do processo de categorização perceptiva é aplicada na psicologia social para a explicação dos fenômenos de segregação. Os processos de categorização social estariam ligados, de fato, a uma representação de si como pertencente a um grupo, ao próprio grupo (ingroup) e diferente dos sujeitos que pertencem aos outros grupos (outgroup). A diferenciação entre ingroup-outgroup permite a definição de Si e dos outros a partir da identificação com o grupo de pertencimento, um processo que permitiria a estruturação da identidade social de cada um:
[…] a categorização, como processo, não constitui apenas o instrumento fundamental para atribuir significado às coisas, pois também serve ao sujeito categorizador para definir seu quem sou, no sentido em que nosso sentimento de identidade também se origina do nosso “pertencimento” a determinados grupos (categorias)[12].
Nesse sentido, a operação de categorização social não passaria de uma transposição de processos perceptivos na construção do sentido de si mesmo e do reconhecimento do grupo de pertença. Em outras palavras, de uma perspectiva psicanalítica, a explicação da psicologia cognitiva sobre a dinâmica da discriminação racial em termos de processos perceptivos de reconhecimento no interior da categoria, coloca a questão da definição da identidade própria e do outro, meramente no plano imaginário, e por outro lado, de maneira especular e oposta, escotomizando assim a dimensão pulsional.
A lógica psicanalítica deve, em vez disso, levar em conta os conflitos entre as instâncias psíquicas inconscientes e conscientes. A ansiedade produzida pela sobrecarga ou pelo gasto energético na categorização dos estímulos vai além da mera “dissonância cognitiva”[13]. Mais ainda, aqui o ego deve se defender do surgimento pulsional de origem endopsíquica que causa angústia. O real psicanalítico tem, neste contexto, um valor diferente do da psicologia cognitiva, que apenas o entende como o “resto” do processo perceptivo. No Outro, o sujeito encontra o que é mais familiar em si mesmo e, que, sendo reconhecido ao seu redor como estranho[14] produz o efeito de desconforto e inquietação típico da experiência do infamiliar.
Em Inibição, sintoma e angústia[15] é colocado o problema da relação entre a angústia e o sistema percepção-consciência (Pcp-Cs), onde o ego tem a função de manter certo equilíbrio psíquico por meio dos mecanismos de defesa:
A função desse sistema, que denominamos Pcp-Cs, é ligada ao fenômeno da consciência; ele recebe excitações não apenas de fora, mas também do interior, e, mediante as sensações de prazer-desprazer que dessas direções o atingem, procura guiar todos os desenvolvimentos psíquicos de acordo com o princípio do prazer. Nós tendemos a imaginar o Eu como impotente contra o Id, mas, quando o ele se opõe a um processo instintual no Id, precisa apenas dar um sinal de desprazer para realizar sua intenção […][16]. (Freud, S. 2014, p.21)
Nesse sentido, do ponto de vista psicanalítico, a discriminação racial, o medo do estrangeiro e qualquer forma de segregação da subjetividade -inclusive aquela inconsciente-, são o resultado do uso de mecanismos de defesa contra essa estranheza que o sujeito não reconhece, sobretudo em si mesmo. O objeto externo que produz a ressonância angustiante assume um valor perturbador, não por ser um elemento que fica fora dos esquemas, mas porque se trata de um real pulsional que surge como uma instância intrapsíquica do sujeito, descrevendo assim uma continuidade entre externo e interno, uma concomitância entre exógeno e endógeno, uma extimidade.
Os esquemas mentais, assim como os mecanismos de defesa, defendem-se da estranheza do real, mas possuem uma potência explicativa inferior do que à teoria psicanalítica da angústia. Esses esquemas, no nível explicativo, se fecham no plano imaginário em uma clara separação entre interno e externo, sujeito e objeto, enquanto a psicanálise estabelece uma relação de continuidade entre as duas dimensões, de modo que o estrangeiro “rejeitado” não corresponde a nada mais que o desconhecimento da própria subjetividade. No encontro com o Outro como diferença absoluta entra em jogo o plano pulsional: a experiência da inquietação surge na divisão do Eu, na falha aberta entre os mecanismos de defesa; é aqui que o perturbador, o xènos, assume as conotações de algo inaceitável, a projeção do próprio kakon[17].
A diferença de perspectiva entre Freud e Jentsch, entre a psicanálise e o cognitivismo, reitera repropõe a questão política e ética do inconsciente: o real como insurgência pode ser denegado na direção da segregação do diverso ou até mesmo “escutado” como absoluta diferença.
Tradução: Janaina Scuccato (Associada ao IPB)
Revisão: Marcela Antelo
Artigo originalmente publicado em: Alparone, Dario. Il perturbante tra psicoanalisi e cognitivismo. In: APPUNTI, Rivista della Scuola Lacaniana di Psicoanalisi. fev. 2019, n.141, p.43-47. Disponível em: https://www.slp-cf.it/slp/wp-content/uploads/2019/02/appunti_febbraio-2019_SITO-2.pdf. Acessado: abril, 2020.
*Dario Alparone é psicólogo, doutorando em Ciências Políticas pela Universidade dos Estudos de Catânia e Participante da SLP – Scuola Lacaniana di Psicoanalise del Campo Freudiano.
O XXIII Encontro Brasileiro do Campo freudiano agradece ao autor a disponibilização do texto para divulgação no Boletim Infamiliar.