Mathieu Siriot*
Em seu curso de 2011, O Ser e o Um, Jacques-Alain Miller afirma que o que abriu a porta para o último ensino de Lacan, foi o gozo feminino[1], este gozo, suplementar ao gozo fálico, que certas mulheres experimentam no corpo sem que elas possam dizer algo sobre ele. Lacan, em um primeiro momento, isolou esse gozo em relação ao gozo masculino para, em um segundo tempo, o generalizar, tornando-o, em seguida, o regime do gozo como tal. Na lição do dia 2 de março de 2011, Jacques-Alain Miller desenvolve passo a passo essa transformação realizada por Lacan. Ele explica a seu auditório que “o gozo como tal é não edipiano, é o gozo concebido como subtraído de, fora da maquinaria do Édipo. É o gozo reduzido ao acontecimento de corpo”[2].
Do gozo edipiano ao gozo do corpo próprio
J-A. Miller define o gozo edipiano como “o gozo que responde ao Nome-do-Pai, que se escreve n.o.m mas que contém, como foi percebido, um não, n.o.n. Ele é permitido no sentido em que passa, primeiro, por uma proibição, pelo nome do interdito”[3]. Ele ilustra esse ponto se referindo ao texto “Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano”, ao longo do qual Lacan diz que “a castração significa que é preciso que o gozo seja recusado, para que possa ser atingido na escala invertida da Lei do desejo”[4]. Ele isola assim uma outra frase de Lacan neste texto: “o gozo está vedado a quem fala como tal, ou ainda, que ele só pode ser dito nas entrelinhas por quem quer que seja sujeito da Lei, já que a lei se funda justamente nessa proibição”[5]. No início de seu ensino, a Lei é para Lacan a Lei da linguagem, do Nome-do-Pai, que diz não ao gozo para que se constitua o desejo. A linguagem ela mesma regula, limita o gozo, e transforma esse limite “natural”, em uma lei que se inscreve no registro da cultura. As interdições atestam essa lei do desejo: desejamos somente o que é proibido, e o gozo provém desta transgressão. A linguagem rima aqui com castração.
Em seu texto, “A pulsão é fala”[6], J.-A. Miller delineia os contornos desse gozo negativizado pela lei do desejo. A lei do desejo, ele diz: “é a lei do desejo do Outro, é aquela que impõe a renúncia ao gozo solitário para, na relação com o Outro, reconquistar uma outra forma de gozo, e para conquistar o que poderia ser o gozo sexual, em oposição ao gozo fálico, o gozo do Outro sexuado”[7]. O gozo negativizado pela lei do desejo, pelo Nome-do-Pai, é o gozo fálico, que Lacan qualifica como “o gozo do idiota”[8] em seu Seminário Mais, ainda na passagem em que ele fala da masturbação masculina. Assim, a interdição a esse gozo do corpo próprio obriga o ser falante a passar pela relação ao Outro, pelos discursos, para poder reencontrar um ganho de gozo, um mais-de-gozar. Ainda nesse mesmo texto, J.-A Miller afirma que no Seminário Mais, ainda Lacan define o falo como o gozo fálico. Ele diz que o essencial “não é que o falo seja um significante, mas que ele seja um gozo, e mesmo o modelo do gozo. O falo é o modelo do gozo tomado na idiotice da prática que se relaciona a ele, ele encarna a não-relação ao Outro. Dizer que o gozo é fálico, basicamente é dizer que ele é o gozo do idiota, ou seja – como o nomeamos desde sempre – ele é solitário”[9].
Desse modo, Lacan vai de uma elaboração norteada pelo gozo edipiano, ou seja, um gozo que passa pelo Outro, pela castração, a uma concepção de gozo solitário e relacionado ao corpo próprio. Em “Os seis paradigmas do gozo”, J.-A. Miller aponta que “a demonstração de Lacan é que todo gozo efetivo, todo gozo material é gozo Uno, quer dizer, gozo do corpo próprio. Sempre é o corpo próprio quem goza, por qualquer que seja o meio”[10]. O lugar do gozo, acrescenta ele, “é sempre o mesmo, o corpo. Ele pode gozar masturbando-se ou, simplesmente, falando. Pelo simples fato de falar, esse corpo não está ligado ao Outro. Ele está ligado apenas ao seu próprio gozo, ao seu gozo Uno”[11]. Aos aforismos “Há o Um” e “não há relação sexual”, princeps do último Lacan, podemos acrescentar “há o gozo do corpo”. Todos evidenciam essa não relação entre o gozo e o Outro. Essa disjunção indica porque J.-A. Miller afirma que Lacan generalizou o gozo feminino como sendo o regime do gozo como tal.
A partir desse gozo suplementar, que não passa pela linguagem, que não é suscetível de castração, Lacan pôde desvencilhar o gozo dos registros imaginário e simbólico, orientando-o em direção ao registro do real. Em seu curso O Ser e o Um, ainda nessa lição do dia 02 de março de 2011, J.-A. Miller propõe que a partir dessa nova orientação, Lacan convoca a prática analítica a se concentrar no gozo enquanto acontecimento de corpo, escapando assim da dialética da interdição-permissão[12].
O gozo como acontecimento de corpo
Essa abordagem do gozo como acontecimento de corpo acentua o corpo, em particular os efeitos de gozo no corpo produzidos pela linguagem. O corpo do ser falante é marcado, desregulado pela língua. Esses traços de discurso, que se inscrevem no corpo, têm valor de acontecimento, de choque, de traumatismo, pois eles provocam um desequilíbrio permanente, um excesso de excitação que não se deixa suprimir. A regulação do princípio de prazer é desse modo inoperante. Em seu texto “Biologia lacaniana e acontecimentos de corpo”, J.-A. Miller explica que o mesmo organismo deve suportar dois corpos distintos, dois corpos sobrepostos. De um lado, um corpo saber, o corpo que sabe o que é necessário para sobreviver, o corpo epistêmico, o corpo que sabe do que precisa, e de outro lado, o corpo libidinal. “[…] de um lado, o corpo-prazer que obedece, e, de outro, o corpo-gozo, desregulado, aberrante, onde se introduz o recalque como recusa da verdade e de suas consequências”[13]. J.-A. Miller utiliza o exemplo do olho, que normalmente deve servir a orientar o corpo no mundo. Mas, a partir do momento em que esse órgão é sexualizado, por exemplo, pelo prazer de ver, ele cessa de obedecer ao saber do corpo, tornando-se, assim, o suporte de um “se goza”. É um prazer, diz ele, que se transforma em gozo, pois ele transborda o saber do corpo e a finalidade vital. A causa dessa desregulação do corpo saber, desse corpo gozo, decorre do fato de o corpo ser habitado pela linguagem. É o significante que causa o gozo. É o significante que causa o gozo e que faz com que o corpo seja o suporte de um “se goza”. Como ele precisa, a incidência essencial é “a incidência da língua sobre o corpo. Isto quer dizer que não é a sedução, não é a ameaça de castração, não é a perda do amor, não é a observação do coito parental, não é o Édipo que é o princípio do acontecimento fundamental, traçador de afetação, porém a relação com a língua”[14].
Essa nova orientação afina os registros do imaginário e do simbólico, aproximando-se de uma operação que ocorre entre a língua, o corpo e o gozo. O que importa, antes mesmo de qualquer efeito de significação ou de sentido, é a marca de gozo que a linguagem produz sobre o corpo e os efeitos dessa repetição do Um do gozo, que, como evoca J.-A. Miller, comemora a irrupção de um gozo inesquecível[15]. Essa repetição de gozo, sem sentido, é o nó do sintoma do qual o sujeito reclama. J.-A. Miller o qualifica de vicio[16], à medida em que cada repetição não pode se adicionar, se contabilizar. A verdade inconsciente se torna uma máscara desse gozo pulsional e autoerótico. Autoerótico, pois a pulsão retorna sobre si mesma. Nenhum objeto a satisfaz, tampouco interrompe o circuito pulsional. J.-A. Miller exemplifica com o caso do obsessivo: “Lacan indica, ao contrário, que o pai, o I do ideal do eu, no fundo, são ficções que permitem desconhecer o que está na raiz, a saber: a presença do olhar. O real do sintoma obsessivo não é o pai. O real que Lacan nos convida a atingir é o olhar. O ideal e o pai são derivados do olhar”[17]. Assim, o “Um do gozo” preside a todo e qualquer discurso e a tudo o que é do registro do Outro, lugar da palavra e do ser.
Ainda em o Ser e o Um, J.-A. Miller propõe um apólogo para explicar esse Um original, anterior a todas as construções significantes: primeiramente existe o real e, em seguida, sobrepõe-se o significante (…) e é a partir do significante que se iniciam as embrulhadas do desejo, as embrulhadas da interdição, as embrulhadas do Édipo, pois, em sua origem, o significante colide com o real, colide com o corpo. Esse choque inicial, esse traumatismo introduz no falasser uma falha que é também o falo, que é também o erro, o pecado[18]. Esse apólogo ilustra o pensamento inovador de Lacan com relação à linguagem e ao corpo, constitutivo do seu último ensino. No seu seminário O Sinthoma, Lacan define a palavra como um parasita, um câncer do qual o ser humano sofre[19]. O corpo se goza, age em função de suas vontades e tudo isso sem o conhecimento do sujeito. Esse corpo estrangeiro se posiciona, desse modo, do lado do ter e não do ser. Ele não é mais considerado unicamente segundo sua forma, sua imagem, como no primeiro Lacan, mas ele é também suporte do gozo. O ser falante deve, assim, compor com três registros disjuntos: o corpo, a linguagem e o gozo. A prática analítica deve assim estar atenta à forma como cada ser falante compõe com esses três registros que o afetam, e o tornam doente, débil diz Lacan.
Texto apresentado nas Jornadas da ECF, «Les femmes en psychanalyse» novembro 2019. Publicado originalmente em Hebdo-Blog, n. 185, Paris, 10 novembro, 2019.
Tradução: Livia Gaetani
* Mathieu Siriot é psicanalista em Paris. Psicólogo clínico de formação universitária e trabalho em instituição. Doutorando em Rennes 2. Possui Master em psicanálise pela Universidade de Paris 8. Colaborador do blog da AMP.
O XXIII Encontro Brasileiro do Campo freudiano agradece ao autor a disponibilização do texto para divulgação no Boletim Infamiliar.