Gabriela Camaly[2]
Reflexão sobre a feminização do mundo
No “Discurso de encerramento das Jornadas sobre psicose infantil”, organizadas por Maud Mannoni em 1967, Lacan antecipou a segregação nascente como o efeito direto do movimento de substituição do antigo regime paterno por outro que destitui o lugar do grande Outro na cultura; a função do pai, que limita o gozo e preserva para a vida garantindo os laços, desfalece. Trata-se de uma “subversão sem precedentes”[3]. Como consequência, os modos de gozo não encontram o limite que era imposto pela ordem simbólica ordenado a partir de um Outro consistente. Apresenta-se então um empuxo à realização mais direta dos gozos, sem os véus do semblante.
Porém, recordemos com Lacan que a “gulodice do supereu”[4] – que sempre exige gozo – é estrutural e não produto da civilização. É o que, em certo sentido, Freud nomeou de “o mal-estar na civilização”, apresentando-o como um sintoma; também é o que o próprio Lacan denominou como “o desvario do nosso gozo” que se instala na civilização e nos seus laços, o qual só pode ser localizado como um mais-de-gozar.
No início do curso O Outro que não existe e seus comitês de ética[5], de Jacques-Alain Miller em colaboração com Éric Laurent, está colocada a questão do sem-limite do gozo feminino como paradigma da época atual. Laurent assinala aí que escapa a Freud o que concerne ao gozo feminino como tal – caracterizado posteriormente por Lacan pela sua impossibilidade de localização e sua condição não contabilizável – e assinala sua consonância com o gozo ilimitado da época, gozo que, por não ter medida, exige cada vez o próprio sacrifício das condições da vida e alcança cada vez mais as formas do insuportável. Nesse sentido, surge aí, na elaboração produzida pelos autores citados nesse curso, a expressão “feminização do mundo”[6] para nomear a explosão de gozo que a época revela. Esse movimento pode ser caracterizado como uma “eclosão da feminização” que apresenta diversas perspectivas[7].
Em primeiro lugar, verifica-se o progressivo empoderamento feminino em nossas sociedades. A “explosão feminista”[8] é acompanhada de uma nova concepção da justiça de gênero que também traz paralelamente a exigência do reconhecimento da diversidade sexual, não normatizada de maneira binária. O auge dos feminismos e das teorias de desconstrução de gênero dá conta disso. Face ao enfraquecimento do lugar do Outro, o posicionamento de algumas “mulheres de ferro” reproduz um novo chamado à função que o Nome-do-Pai impunha na cultura. Esse fenômeno implica uma feminização aparente, sustentada em um falocentrismo renovado.
Em segundo lugar, constata-se a consonância entre o gozo sem limites que caracteriza a época atual e o gozo suplementar feminino – ponto que retomaremos mais adiante. Constitui a dimensão mais real da feminização do mundo, que denota como o empuxo a gozar próprio da época se conjuga com o gozo dos sintomas subjetivos.
Em terceiro lugar, as mulheres se apresentam também como aquelas mais sensíveis ao furo no simbólico para nomear o gozo e melhor posicionadas para inventar soluções singulares, já que a sua relação com o gozo escuro é muito mais próxima que para os homens e a relação com os ideais um pouco mais frouxa.
Nesse sentido, para a psicanálise, a feminização do mundo não tem a ver unicamente com o auge das mulheres no poder e ao empuxo ao “sem-limite”, senão também – e em seu reverso – com a possibilidade de saber fazer com o S(Ⱥ), isto é, com a inexistência do Outro para nomear o gozo. Miller acrescenta que talvez elas, então, estejam, por sua íntima relação ao não-todo, mais acomodadas com a época e, podemos acrescentar, mais bem orientadas.
Proponho então distinguir a feminização do mundo e a posição feminina. No primeiro caso, trata-se do empuxo pulsional articulado ao ilimitado do gozo que na época atual se apresenta sob formas diversas. No segundo caso, a posição feminina, formalizada por Lacan no seminário 20, coloca a subjetivação feminina da sexualidade articulada em uma dupla perspectiva: por um lado, à lógica fálica – onde o gozo é significantizável; por outro, à relação possível com um gozo suplementar – Outro respeito do falo – pela qual ela própria se inscreve como “não-toda”, isto é, afetada pela dualidade estrutural do gozo.
Pontuações sobre a sexuação feminina
Sabemos que, para Freud, a saída normal ao drama edípico feminino é através da aceitação da castração e a produção da equação simbólica pênis-criança que se sustenta na lógica fálica.
Encontramos também em Lacan que a relação de uma mulher com um homem se inscreve na lógica fálica, seja consentindo com ser tomada como objeto de seu fantasma, seja se fazendo dar, pelo homem em questão, esses objetos a dos quais ela se ocupará maternalmente. Ao se deixar tomar pelo desejo de um homem (quer dizer, funcionando aí como semblante de desejo e não como objeto real), e na medida em que se conjuga aí também seu próprio desejo, a mascarada feminina é uma solução à não relação sexual que faz possível o encontro entre os sexos. Não obstante, mais além das ficções do semblante e das vicissitudes do desejo, Lacan sustenta em “Televisão” que a mulher “se prepara para que a fantasia do homem encontre nela sua hora da verdade”[9], apontando assim um real em jogo.
Nos anos 1970, Lacan se separa radicalmente de Freud ao formalizar que esta relação da mulher à função fálica – que compartilha com o homem – não a define enquanto tal e ao articular que na singularidade da posição feminina se põe em jogo um impossível de saber que concerne ao gozo. Ainda que a mascarada feminina cumpra uma função essencial na comédia dos sexos, ela é ao mesmo tempo o signo do rechaço das mulheres a respeito do mais íntimo – mas ao mesmo tempo o mais hetero – da feminilidade[10]. Ela se propõe como objeto de desejo se identificando com o falo, dimensão do ser feita de semblante, enodado à demanda do Outro. Mas essa operação presentifica, uma vez que vela no mesmo movimento, o que Lacan chama “sua profunda Verwerfung”[11] daquilo que a habita, rechaçando a singularidade do seu gozo. No campo da prática analítica, conhecemos bem a inibição, os sintomas e a angústia feminina que esse rechaço produz.
Corresponde também acrescentar que o rechaço à feminilidade não é privativo do gênero feminino, senão que é estrutural[12], denominador comum para os sexos. Existe um “para todos” do referido rechaço devido a que a experiência feminina em sua relação ao gozo confronta, a uns e outras com o furo da inexistência da relação sexual e com a presença do impossível de negativizar. É um modo possível de cernir que não se pode fazer Um nem com o Outro suposto do sentido nem com o parceiro sexual.
Nota sobre a dualidade do gozo feminino[13]
A dualidade feminina determinada pela relação ao gozo fálico e pela relação a um gozo suplementar é antecipada por Lacan no seminário 19[14], no mesmo momento de seu ensino em que formaliza a inexistência do Outro e a existência de um gozo opaco, sem sentido nem representação possível.
Segundo Miller, o caminho do último ensino de Lacan se abre a partir de cernir o gozo feminino enquanto ele próprio faz obstáculo, escapando à mortificação que a linguagem imprime ao corpo.[15] O gozo feminino, “Outro” com respeito ao falo, se define por sua infinitude. Como se sabe, no seminário 20, Lacan afirma que “A” mulher não existe e escreve a posição feminina com o matema “A/”, definindo sua posição por estar não-toda inscrita na função fálica. A dificuldade reside em compreender que não se trata de um gozo complementar a respeito do falo, mas, inversamente, distante de toda complementaridade possível a uma mulher, este gozo a divide e a torna Outra. Já em 1958, Lacan havia apontado a função de relevo que um homem pode ter para uma mulher ao lhe permitir, se ela se presta, a se converter em “Outra para si mesma”[16] tanto como o é para ele. Trata-se não só de uma satisfação sexual desejada e consentida, mas da experiência de um gozo deslocalizado, que a envolve e a confronta com sua própria alteridade.
Lacan anuncia: “Há um gozo dela, desse ela que não existe e não significa nada. Há um gozo dela sobre o qual talvez ela mesma não saiba nada a não ser que o experimenta: isto ela sabe. Ela sabe disso, certamente, quando isso acontece. Isso não acontece a elas todas”[17]. Diante desse gozo, não há um saber articulado no inconsciente, não há modo de dizer em que consiste, salvo por aproximações possíveis que só valem para uma única mulher.
Consentir à dualidade do gozo, sem se perder nas aporias do falo nem na desmedida do gozo ilimitado, seria uma via possível pela qual uma mulher pode inventar sua própria posição feminina, singularmente não-toda.
A lógica feminina não-toda como avesso da feminização do mundo
A época atual, que não é a de Freud nem a de Lacan, nos obriga a um esforço de leitura dos modos de apresentação do gozo contemporâneo, mas a época também obriga a encontrar outros modos de tratamento possíveis quando não se conta com a consistência simbólica do grande Outro. Isto afeta de maneira direta a prática da psicanálise e da interpretação. É a mudança de bússola antecipada por Lacan em seu tempo e sobre o qual Miller tanto enfatiza em seu último curso.
O empuxo à feminização do mundo, ou seja, “a aspiração contemporânea da feminilidade”[18], é um modo de nomear o empuxo ao ilimitado próprio de nossa época. Mesmo assim, é uma maneira de apontar que, diante do desfalecimento dos semblantes paternos, algumas mulheres são impelidas a ocupar seu lugar encarnando a lei de ferro, ou seja, interpretar o progressivo empoderamento dos discursos feministas.
Mas há que recordar que, para a psicanálise, o feminino e o empoderamento fálico se separam para abrir caminhos às soluções possíveis ante um gozo que nada tem a ver com as aspirações do falo. Essa perspectiva não só implica ter em consideração os excessos de gozo, senão também os diferentes esforços de nomeação e de tratamento, obtendo às vezes uma inscrição social. Hoje isso é possível, mas também é necessário não perder de vista que o gozo como tal – ao igual que o gozo feminino, sobrepassa o sujeito – restará sempre em uma zona escura, sem inscrição possível. Esse gozo não se apaga com o reconhecimento do Outro, nem com a igualdade de direitos que a civilização possa outorgar no plano político e social.
Para concluir, podemos dizer que, no caso das mulheres, tratar-se-á de como cada uma se arranja com a dualidade de seu gozo, o qual lhe permitirá não só entrar em relação com o desejo de um homem, mas com o próprio desejo de mulher posto em jogo. No caso dos homens, tratar-se-á, em troca, de como cada um se arranja no encontro com uma mulher, por um lado, e com o gozo indizível de seu sintoma, pelo outro. Em ambos os casos, tratar-se-á de fazer cair a barra sobre a crença no “todo do gênero feminino” para fazer lugar à singularidade de “uma por uma”. Para ele e para ela, tratar-se-á de ir mais além da crença na existência de “A” mulher, crença compartilhada dos neuróticos que conduz ao rechaço estrutural da feminilidade.
Para além dos gêneros, para além das identificações sexuais necessárias para a inscrição da sexuação, isolar a presença do gozo em sua contingência, pelos caminhos de uma análise, abre o espaço de possibilidade para se arranjar com o inominável do gozo, sempre Outro. É aquilo que Miller chama, em sua elucidação do último ensino de Lacan, de uma orientação da análise que conduza a “que o ser falante lhe diga sim à feminilidade”[19].