Maria Josefina Sota Fuentes[2]
Eu gostaria de começar agradecendo este convite à Comissão Organizadora do XXIII Encontro Brasileiro do Campo Freudiano – a Sérgio de Castro, Analícea Calmon e Sônia Vicente – e também aos meus colegas da Comissão Científica, em especial aos coordenadores, Marcela Antelo e Iordan Gurgel, com quem temos tido a alegria de trabalhar conjuntamente, construindo um campo de investigação que articula três temas bastante difíceis: o feminino, o infamiliar e o paradoxo de “dizer o indizível”.
Neste trabalho, decidi encarar de frente o que tem sido a minha questão, que consiste em articular, mas também em diferenciar o feminino e o infamiliar. Para tanto, dividi o trabalho em duas partes:
A mulher não existe, mas pode se tornar infamiliar
A articulação entre o feminino e o infamiliar parece evidente se considerarmos o que já foi dito sobre as mulheres ao longo da história. Que elas encarnem um real estranho, inquietante, dando corpo ao que permanece inapreensível para o sujeito, é o que recolhemos nas inúmeras representações dA mulher na civilização, que cumprem a função de nomear e localizar um real perturbador. A mais famosa, mas não única, a dit-famação, segrega o feminino, fazendo da mulher um objeto inferior, incompleto e degradado, tal como a crítica feminista não cessa de denunciar.
Nesse lugar vazio de representação do feminino, surgem figuras dA mulher que não existe, máscaras que percorrem figuras de horror, malignas, de luxúria e sensualidade, mas também da mulher adorada que fascina, da beleza que cega, da Dama, a Domna que domina no amor cortês, encarnação da voz superegoica cruel que comanda. Mas é como mãe que A mulher, que não existe, se escreve no inconsciente, contaminando a relação do homem com a mulher. Com a mãe, por fim, a relação sexual existe: é o que o Édipo recalcado no inconsciente não cessa de nos revelar.
Nos inúmeros mitos da Deusa Branca recolhidos por Robert Graves, ela é “o ventre de todos os bosques”[3], origem que dá vida e protege, mas também “a Deusa do abraço mortal”, presença da morte encarnada: “sou a tumba: de toda esperança”. As figuras da Deusa, diz Lacan, “aquela que em suas palavras perde-se na noite dos tempos, por ser a Diferente, o Outro perpétuo em seu gozo”[4], são nomes do Nome-do-Pai que cumprem a função de nomear o real do gozo feminino e estabilizar um mundo, alojando nela esse gozo “louco e enigmático” que perturba os limites do masculino.
Porém, nada mais estranho do que a figura da “verdadeira mulher”, caso ela existisse. Medéia, a mulher de atos impensáveis, capaz de destruir o universo familiar de um Jasão, dando a ver que tudo não passa de um grande teatro. As mulheres, mais próximas do real, ultrapassam os limites, destroem os semblantes civilizatórios por padecerem menos da “angústia de proprietário”, segundo a expressão de Miller[5], a angústia de quem não aceita perder o poder fálico.
Mas a Gradiva de Jensen não. Ela “avança” de outra maneira, tal como sugere o andar mágico dessa figura mitológica que tanto fascinou Norbert. Ela não arrebenta com os semblantes, mostrando-lhe que seu amor não passa de sonhos e delírios – posto que A mulher não existe –, uma vã ilusão a ser destruída pelas lavas do vulcão em Pompeia. Ela está bastante advertida de que somente uma máscara poderia existir ali onde a Gradiva emerge. Ademais, confere aos semblantes seu valor operativo de “semblantes de gozo”, encarnando o objeto a, causa do desejo, dando ao homem o acesso ao gozo fálico.
Norbert, que admirava a mulher morta, esculpida no mármore do museu, encontra uma mulher de carne e osso, que, por fim, revela ser sua amiga de infância ao sair dos escombros do recalque, aquela que aceita dar vida à fantasia de ser sua Gradiva. Eis que surge Zoe, essa Outra bem infamiliar que irrealiza o mundo do nosso herói, bastante embaraçado, sem que precise mostrar-lhe o que seria uma mulher de verdade. Ao contrário, ela aceita transitar entre seus sonhos e delírios, ao mesmo tempo em que enlaça os seus próprios fios que haviam ficado soltos quando perdera seu amor de infância. O amor ganha assim a consistência de realidade não por se opor à fantasia, mas por nascer da mesma trama inconsciente que compõe o tecido dos sonhos, velando o vazio que ali se aloja – o vazio dA mulher que não existe.
Não sem razão, como se diz, o amor é uma loucura – lembra Lacan[6]. Como crer que a mulher possa existir? Não faltam figuras literárias da mulher espectral sonhada pelos surrealistas. Tampouco as experiências de despersonalização e do estranho sentimento de desrealidade do sujeito enamorado, evocado por Roland Barthes. Há um eterno abismar-se nos Fragmentos de um discurso amoroso. A realidade do apaixonado é fugidia:
Espero um telefonema e essa esperança me angustia ais do que de costume. Tento fazer qualquer coisa e não consigo. Passeio pelo quarto: todos os objetos cuja familiaridade habitual me reconforta –; os telhados cinzentos, os ruídos da cidade, tudo me parece inerte, separado, siderado como um astro deserto, como uma Natureza nunca habitada pelo homem.[7]
O fascínio de ter, por fim, encontrado um objeto para o desejo; a presença, sempre alucinada, desse reencontro com o objeto essencialmente perdido e que só se realiza no sonho, ensina Freud, gera a suspeita de irrealidade. Isso é um sonho? Mas quando o mundo se resume a um mero sentimento do mundo, fugidio, que se esvai sem que eu possa dizer mais nada, nessa desrealidade[8], então, sucumbo.
No amor, quando “uma mulher roça no inconsciente do homem” [9], diz Lacan, ele passa a crer nela, acredita que ela seja capaz de lhe dizer algo como um sintoma a ser decifrado. E Freud acreditou, como ninguém, na mulher como aquela que lhe entregaria a chave do mistério da feminilidade. Mas foi Lacan quem abriu a caixa de Pandora e levantou esse véu ao dizer que “A mulher não existe”, “arrancando algo de si mesmo” ao dar um passo a mais nas suas passagens pela sexualidade feminina, como diz Miller, “até generalizar o que entreviu pelo viés do gozo feminino e fazer dele o regime do gozo como tal”[10].
Com a metáfora de um inconsciente litoral, Lacan abraça o real do gozo feminino fora do sentido que habita em cada um. As diferenças podem se avizinhar – e não se trata aqui das diferenças relativas que pertencem à lógica do significante e funcionam por oposições, mas da diferença radical, absoluta, aquela que sequer posso dizer qual é, mas que ainda assim ex-siste.
Por isso, o feminino não é esse dark continent avistado à distância, e que só poderia ser delimitado à custa de um Eu que se afirma e se fecha em seu Heim, no casulo de sua pretensa identidade, onde se reconhece. O feminino é o lugar dessa Outra coisa, litorânea, mar aberto sem limites que nos habita. Ausência de inscrição no inconsciente, é a presença de um real que faz vacilar as identificações sedentárias e todos os sonhos de verdade. Faz estremecer o universo como objeção ao todo que se pretende limitado.
Não é de se estranhar que a presença do feminino possa provocar estranhamentos, inibições, sintomas e angústias, seja qual for a identidade sexual que se pretenda. A clínica da histeria é exemplar. A histérica padece precisamente da ausência de uma identificação que sustente o corpo, servindo-se do pai como armadura e alojando o feminino na Outra mulher, que transtorna.
O infamiliar: uma inibição específica do imaginário
Entretanto, caberia aqui uma questão: embora o feminino possa produzir o sentimento do infamiliar, o gozo feminino como experiência de corpo que se dá fora da linguagem, entre “pura ausência e sensibilidade”, é, precisamente, um acontecimento de corpo sem sujeito, nem para se angustiar, nem estranhar a ausência de limites do próprio corpo, que é experimentado como Outro. O Ego, esse “espasmo instantâneo do mundo”[11], como escrevia Clarice Lispector, desmancha-se como castelo na areia, e o sujeito, arrebatado, está fora si.
Se inicialmente, no seminário 10, Lacan localizou no infamiliar “um eixo indispensável para abordar a angústia”[12], sem confundi-los; no seminário 23 esta é tomada como uma “inibição específica”[13], “bastante fugidia”[14], que se dá no imaginário do corpo com a intrusão de um real. “O corpo nos é estranho”[15], afirma Miller; funciona por si só sem que tenhamos a menor ideia disso. O homem não é esse corpo, apenas o tem e por isso mesmo ele cai fora a toda hora, produzindo fenômenos de despersonalização e perturbação no enquadre da realidade, que só se sustenta quando o imaginário e o simbólico se mantêm enodados.
Quando a angústia, essa vizinha do infamiliar, irrompe, “um vazio sinistro se esparrama por toda parte” – tal como escrevia Clarice Lispector a propósito da angústia. É o vazio angustiante que dita o luto a ser feito de todos os objetos mundanos, presente no mais-de-gozar, e que surge na presença do objeto a desnudado, quando caem os semblantes que antes o domesticavam na moradia da fantasia.
O sujeito se defende como pode. Nada impede que a própria angústia surja como nomeação do real; a inibição como nomeação do imaginário; e o sintoma como nomeação do simbólico. É o que propõe Lacan em RSI[16], elevando o trio freudiano à categoria de nomes-do-pai, amarrações que sustentam o nó como suporte do sujeito. Ainda que seja uma experiência limite, como no caso da angústia ou do infamiliar, que desestabilizam o sujeito à beira de um real, paralisando-o em sua divisão subjetiva, trata-se de defesas frente a um real perturbador que irrompe, seja qual for a identidade sexual do sujeito em questão. Tais nomeações consistem em devolver ao sujeito o sentimento de pertencimento ao corpo, nem que seja para senti-lo, no limite, como pura dor.
Assim, convém sublinhar que, embora o corpo seja estrangeiro, estranho, é preciso ter um corpo, isto é, adquirir alguma consistência imaginária do corpo para subjetivar esse estranhamento ou a vertigem da angústia.
Nesse sentido, são bastante esclarecedoras as passagens de Lacan sobre O deslumbramento, de Marguerite Duras, comentadas por Miller e Laurent[17]. Pois a personagem Lol, no que chamamos uma “experiência extrema da feminilidade”[18] que é o arrebatamento, carece justamente de um sentimento de si, por ter tido seu corpo extraviado na famosa cena do baile, por uma mulher fatal que rouba seu noivo. O sentido comum cobraria de Lol o pesar de ter sido deixada, traída, raiva ou ciúmes, qualquer coisa menos o que Marguerite Duras descreve: a “estranha omissão de sua dor”[19].
Após o baile, Lol V. Stein permanece como a Coisa petrificada, prostrada na cama por semanas sem poder dizer nada, apenas o insuportável que era ter de esperar tanto tempo. Lol é pura vacuidade, sob o vestido que portava não havia ninguém para habitá-lo, nenhum Heim nem nome que a designasse. Na falta de uma palavra para dizer o indizível, o buraco da inexistência dA mulher ao qual fora lançada, a novela avança na reconstituição de uma fantasia que lhe dê corpo e localize seu gozo. A montagem é inusitada, envolvendo esse “ser-a-três”[20] ao qual Lacan se refere, um ser tripartido. Casualmente, ela passa a observar um casal de amantes através da janela de um jardim, com o consentimento de Hold, o homem que lhe dá a ver o corpo nu de Tatiana, uma amiga da infância que opera como seu duplo imaginário. Assim, Lol encontra na imagem fascinante do corpo feminino, desnudado pelo olhar de Hold, um suporte para si.
Contudo, nesse “ser-a-três” quem subjetiva a divisão até o limite da angústia é o narrador da história, Hold, o lugar do “eu penso”, e que finalmente convida Lol a encarnar A mulher no ato sexual. Mas, sem corpo para vestir sua paixão, Lol enlouquece.
Por fim, cabe sublinhar, como o fez Lacan, o talento da escritora em localizar “as taciturnas núpcias da vida vazia com o objeto indescritível”[21]. As núpcias com o indizível do feminino, onde não havia nada, nem ninguém para estranhar esse estranho corpo arrebatado. O infamiliar fica por nossa conta.